Paisagem autobiográfica, Guido Guidi em “Per Strada”

Texto: Marta Machado

2018 / 2019

Paisagem autobiográfica

Landscape pictures can offer us, I think, three verities - geography, autobiography, and metaphor. Geography is, if taken alone, sometimes boring, autobiography is frequently trivial, and metaphor can be dubious. But taken together, as in the best work of people like Alfred Stieglitz and Edward Weston, the three kinds of information strengthen each other and reinforce what we all work to keep intact - an affection for life.

Robert Adams, Truth and Landscape in Beauty in Photography
Com 77 anos, Guido Guidi (GG) é natural de Cesena e vive atualmente em Ronta, freguesia do mesmo lugar de onde é natural. Viveu grande parte da sua vida na região da Emilia-Romagna, ainda vive, o que lhe permitiu ver a cidade mudar ao longo do tempo como refere “The history of the city is like an egg, (...) The ancient city was like a boiled egg, with clear edges bound by walls. Then the city became a fried egg, its edges spread out. Nowadays, it is a scrambled egg, with no form.” 1

Per Strada é uma colectânea sobre essa região e a transformação do território entre 1980 e 1994, perto de sua própria casa em Cesena e imediações, colecciona esses registos nos três volumes que constituem o livro. Esta colectânea que constrói um registo sobre o que é ordinário e banal inicia-se, com as primeiras páginas do primeiro volume com uma imagem de uma porta entreaberta em Via Emilia, Cesena, lê-se o nº “1” no canto superior esquerdo, o interior é escassamente visível. A porta e as suas marcas do uso e do tempo, a sua funcionalidade é talvez um dos temas mais abordados ao longo do trabalho de GG e, no caso, talvez uma introdução metaforicamente aludindo à entrada/ inicio de um diário fotográfico. Regista as mudanças do território numa paisagem essencialmente agrícola para uma paisagem mais transgénica 2 (como Álvaro Domingues, geógrafo, define), de difícil caracterização.
GG conta histórias com as suas fotografias, histórias de um tempo e de um uso através de marcas ou inscrições, através de um “punctum” de acordo com Roland Barthes. “I thought of photography as a form of prayer: a way of giving things dignity, of acknowledging their presence, just as Strand, Weston or Atget present people or houses” 3, GG fotografa metodicamente e repetidamente um assunto, no sentido de analisar e entender as suas mutações com o tempo (seja a longo termo ou apenas no próprio dia), um ato quase religioso, como o próprio descreve, de conferir dignidade a um objeto fotografado.

Da geografia

Via Emilia, onde se desenvolve a cidade-natal de GG, é um eixo que liga o mar Adriático ao mar Mediterrâneo ao mesmo tempo que quebra a região de Emilia-Romagna, a norte. Construída no século III pelos romanos para servir essencialmente a circulação militar, esta artéria foi também a primeira fronteira de Itália, uma zona tampão contra os gauleses e simultaneamente um local de transações mercantis. A partir desta artéria desenvolveram-se cidades como Cesena, Forlimpopoli, Forli, Faenza, Piacenza, Modena, Rimini, Parma e Bologna.

A Via Emilia tem cerca de 2200 anos de história, num território em constante mudança, a artéria gera em seu redor, como que um palimpsesto - um território escrito por cima do anterior sucessivamente à medida que as cidades anexas se vão desenvolvendo.

A Emilia-Romagna é, até meados do século XX, também o local onde nascem e vivem alguns dos maiores autores de cinema e fotografia italianos, como Frederico Fellini (n. 1920), Michelangelo Antonioni (n. 1912), Luigi Ghirri (n. 1943), Guido Guidi (n. 1941) entre outros. Entre estes vários autores, destacamos Fellini pelo valor autobiográfico no filme Amarcord de 1973 que retrata a sua infância em Rimini, um filme em que reinterpreta momentos da sua infância e e as suas memórias - amacord significa “eu lembro-me” no dialeto romagnol da região - ligados a um período fascista de Mussolini e às crenças católicas, Fellini debruça-se sobre as suas memórias e sobre o quotidiano banal e, simultâneamente cómico, e sobre o lugar que lhe é familiar.

Do lugar como construção do sujeito - A representação do lugar autobiográfico

O valor e significado de paisagem podem ser entendidos atendendo à própria constituição cultural do observador, isto é, “o valor estético da paisagem não é inerente ao espetáculo - nem parte da sua essência mas antes construído por aquele que a percebe como tal” 4.

A paisagem é uma construção do ser humano e cujo conceito vai evoluindo de acordo com a relação observador e observado.

A paisagem é um conceito que foi evoluindo desde a cartografia até à construção de vistas no sentido de registar um domínio na época feudal, um sentido de pertença do território através da representação. GG procura dominar o que observa através do registo,uma leitura, um entendimento de lugar enquanto fenómeno concreto constituído por “coisas” concretas que se relacionam com o indivíduo e que se interrelacionam entre si, por vezes com um certo sentido de pertença - “Place is evidently an integral part of existence!” 5.

A ideia de lugar introduz uma relação direta de um sujeito a uma geografia, pelo que o termo “lugar” se enquadra de forma mais precisa no discurso sobre o trabalho Per Strada. Não há lugar sem ocupação humana, “Since the photographer’s picture was not conceived but selected, his subject was never truly discrete, never wholly self-contained” 6 , para além da questão da selecção da imagem a exibir, os limites cortados pelo enquadramento da fotografia, estendem-se para lá do que a fotografia exibe, o simples ato de escolha e eliminação força a concentração de informação nos limites da imagem, GG informa a fotografia com a sua própria presença o seu olhar perante uma paisagem ou o seu olhar sobre o seu próprio reflexo e sobre o olho de vidro que o observa, adicionando uma segunda dimensão ao enquadramento.

A cidade ovo-estrelado que regista, a cidade sem limites com uma organização aparentemente heterogénea e mesclada, indefinida, permite-se, pela proximidade, ao embeber o sujeito para o seu âmago contextual, a uma busca por uma definição, uma construção de diálogo, em corpo e o tecido urbanizado. Guidi vivencia o lugar, experiencia, deixa marcas e regista estes locais, dos quais o corpo é parte integrante, o que, tendo em conta a familiaridade da geografia para com GG, denuncia uma vontade autobiográfica.

Analisando duas fotografias consecutivas do primeiro volume da coletânea, na fotografia na página seguinte, GG fotografa uma montra de um sapateiro em 1984 (01.). Leêm-se prateleiras vazias e mostradores descalços, uma fachada em que faltam partes do revestimento, um comerciante ao balcão olhando para o fotógrafo e do lado oposto, vemos GG e a sua Deardoff num tripé. Vemos GG em duas fases, no reflexo da montra e no reflexo do espelho atrás do balcão do comércio. Numa primeira instância vemos o fotógrafo de corpo inteiro e numa segunda apenas “do nariz para cima”.

Na sequência do livro, segue-se na página ao lado uma segunda fotografia, contemporânea da anterior, mas da mesma índole da primeira. GG coloca-as lado a lado. Esta segunda fotografia (02.) reflecte GG numa margem da imagem, no lado simétrico a figura de uma criança e ao centro outra figura sobreposta a um cartaz de um rosto de uma mulher, conforme acontece também com GG. Desta vez, o interior do estabelecimento não é perceptível, mas o reflexo informa-nos do contexto onde se insere, da galeria mais próxima, à árvore do lado oposto da rua.

Nas duas fotografias os elementos refletidos olham para nós através de um vidro.

“A photograph looks at me. In many ways what I’m asking of a photograph when I look at its surface is that it looks at me. I don’t know whether this is atropomorphism or simply that the photograph has a presence: I am the presence of that object and that object looks t me. I am in the presence of that photographed subject and the object of the photograph looks at me at the same time. All photography looks at me: this is essential.” 7

Em ambas as fotografias, existe uma troca de olhares, uma troca de entendimento entre o fotógrafo e o fotografado - spectator e operator, segundo Roland Barthes 8, um ato de reconhecimento do fotografado e de cópia da mesma, remetendo ao ensino beaux-artiano, o duplicado do olhar de GG, tendo a conta a sua metodologia de repetição em fotografia, é como um ato de devoção e reconhecimento.

Nas fotografias em análise, GG representa-se a si próprio através do reflexo em dois momentos perto de Cesena, uma cidade de periferia, local onde habita há 77 anos. Biografia e geografia unem-se 9 em imagens que poderão ser consideradas autobiográficas, e através das quais GG faz um retrato de si próprio através do contexto e da sua assumida presença na imagem, um momento em que operator e spectator coexistem e se informam um ao outro.
Nas imagens, a câmara denuncia a sua posição, assume-se como estática perante um reflexo que representa o que está à sua frente, atrás de si e a si própria. O reflexo que representa informa, em termos de contexto, a localização numa periferia, um território com aparente baixo índice de construção e GG encarando a sua posição ao centro da geografia que enquadra.

Na segunda fotografia, o reflexo sugere uma envolvente construída, maior tráfego automóvel, uma geografia provavelmente oposta à primeira ainda que se entenda encontrar geograficamente próximo do local da primeira imagem. Neste reflexo, por sua vez, GG encontra-se próximo da aresta da imagem, o centro da imagem é um jovem de bicicleta, repetido na margem direita da imagem. GG coloca-se na margem da fotografia, talvez como a periferia está a margem da cidade, ainda que ambas se meclem.

Pode-se ler esta segunda imagem como o contraponto da primeira, como a antítese confirma a tese ou a regra confirma a exceção, reforçando uma tomada de posição consciente em relação à geografia.

Robert Adams menciona “We rely, I think, on landscape photography to make intelligible to us what we already know” 10. A partir destas imagens lê-se a construção do espaço entre o fotógrafo e o fotografado tornando-se num processo de auto-conhecimento de GG e de reconhecimento da sua posição enquanto homem num lugar e do lugar enquanto parte do homem.

Nas fotografias que se seguem, GG procura várias vezes indícios de presença de um indivíduo sob a forma de marcas, marcas num lugar em que todos os signos compõe a fotografia e informam o caráter e a fenomenologia do lugar.
“The basic property of man-made places is therefore concentration and enclosure. They are insides in a full sense which means that they gather what is known”. 11

GG, observando as alterações que o território foi sofrendo ao longo de cerca de 15 anos, regista nomeadamente a construção da auto-estrada A41, paralela à Via Emilia, na década de 80 que vem influenciar a organização do território junto à sua habitação à altura rodeada por território agrícola que outrora classificava a zona de Cesena, mas que agora se mescla com uma ideia de urbanidade gerando a tal paisagem transgénica referida acima. Perante uma situação de familiaridade do lugar, GG regista a paisagem em alteração ao longo dos anos. Vagueando pelas estradas do seu quotidiano, GG faz um levantamento à semelhança de Eugene Atget um flâneur que fotografa as rua de Paris, o quotidiano e o banal, as lojas e as prostitutas, registando o testemunho de uma cidade prestes a ceder aos planos de Haussman. Concerteza o trabalho de Atget influencia GG formalmente em termos de objeto fotografado, pela banalidade e pelas “coisas” concretas a par de uma estética americana que vem romper com os clássicos cânones da fotografia a preto e branco, com autores como Stephen Shore. Se a fotografia americana mostrou um novo entendimento sobre a cor a GG, Atget mostrou-lhe a capacidade de procurar entender o lugar em mutação em que o autor se insere.

GG, regista o lugar que lhe é familiar e que vê crescer e desenvolver ao longo do tempo como se de um novo e assumido elemento da familia se tratasse, com frequência e insitência, ao modo de GG, repetindo várias vezes os mesmos enquadramentos num ato de devoção e de procura. O lugar é do seu domínio a partir do momento em que a câmara dispara, procura ler e perceber o território em que se insere e procura perceber e registar o seu próprio corpo no lugar, diretamente através de fotografias como as exibidas acima, ou indiretamente através do enquadramento que capta em fotografias tiradas ao nível do seu olhar em que nos mostra o que o autor vê e a dimensão biográfica que se atribui pela franqueza do posicionamento do observador na foto e da relação com o lugar.

“In the same way as the camera thinks, the film thinks, the emulsion thinks, and I think afterwards, but afterwards, through the emulsion, through the camera. The camera helps me to see: if it really is a prosthesis, it helps me to come to know the world, to touch it.” 12

A câmara é o meio para alcançar um entendimento, como se a existência deste objeto de visualização conferisse distância crítica entre observador e observado. A câmara torna-se um meio de construção de um diálogo entre corpo e lugar na procura do “eu” e do “outro”.

Notas:
1 HIGGINS, Charlotte, “Guido Guidi: ‘Many times I’m not looking when I press the shutter’” in The Guardian, 5 Nov 2018
2 DOMINGUES, Alvaro, “A Rua da Estrada”, Dafne Editora, 2009
3 GUIDI Guido, “Guido Guidi in conversation with Antonello Frongia e Andrea Simi” in Per Strada , ed. MACK, 1ª ed., 2018
4 ANDREWS, M., Landscape and Western Art. Oxford University Press, Oxford, 1999, p.4
5 NORBERG-SHULZ, Christian, Genius Loci : Towards a Phenomenology of Architecture, Rizzoli New York, 1980, p.6
6 SZARKOWSKI, John, The Photographer’s Eye, The Museum of Modern Arte, New York, 2007
7 GUIDI Guido, “Guido Guidi in conversation with Antonello Frongia e Andrea Simi” in Per Strada , ed. MACK, 1ª ed., 2018
8 BARTHES, Roland, “A Câmara Clara, Notas sobre a Fotografia”, ed. Edições 70, Lisboa, p. 87
9 HIGGINS, Charlotte, “Guido Guidi: ‘Many times I’m not looking when I press the shutter’” in The Guardian, 5 Nov 2018
10 ADAMS, Robert, “Truth and Landscape” in “Beauty in Photography”, ed. Aperture, 1996, p. 16
11 NORBERG-SHULZ, Christian, Genius Loci : Towards a Phenomenology of Architecture, Rizzoli New York, 1980, p.10
12 GUIDI Guido, “Guido Guidi in conversation with Antonello Frongia e Andrea Simi” in Per Strada , ed. MACK, 1ª ed., 2018


Bibliografia:
SONTAG, Susan, “Objetos melancólicos” in Ensaios sobre a fotografia, ed. Quetzal Editores, 2015
BARTHES, Roland, “A Câmara Clara, Notas sobre a Fotografia”, ed. Edições 70, Lisboa,
HIGGINS, Charlotte, “Guido Guidi: ‘Many times I’m not looking when I press the shutter’” in The Guardian, 5 Nov 2018
GUIDI Guido, “Guido Guidi in conversation with Antonello Frongia e Andrea Simi” in Per Strada , ed. MACK, 1ª ed., 2018
ADAMS, Robert, Beauty in Photography, ed. Aperture, 1996
WESTON, Edward, “Ver fotograficamente” in Ensaios sobre Fotografia, de Niépce a Krauss, ed. Orpheu Negro, Lisboa, 2013
STIEGLITZ, Alfred, “A Fotografia Pictorialista” in Ensaios sobre Fotografia, de Niépce a Krauss, ed. Orpheu Negro, Lisboa, 2013
GUIDI Guido, “Guido Guidi in conversation with Antonello Frongia e Andrea Simi” in Per Strada , ed. MACK, 1ª ed., 2018
SZARKOWSKI, John, “The Photographer’s Eye”, Museum of Modern Art, New York, 2017
AZEVEDO, Ana Francisca de, “A ideia de paisagem”, Figueirinhas, D.L. 2008
NORBERG-SHULZ, Christian, Genius Loci : Towards a Phenomenology of Architecture, Rizzoli New York, 1980
ANDREWS, M., Landscape and Western Art. Oxford University Press,1999

All images © Marta Pinto Machado

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