Artistic Residency at Encontros da Imagem, Braga Exhibition September 2022
Marta Pinto Machado não se deixará morrer
texto de Djaimilia Pereira de Almeida
Prédios sem vida, a preto e branco, e uma linha de ciprestes. Estaremos nas imediações de um cemitério? Vimos da terra e à terra tornamos. Mas o solo é dinâmico. Morada final, mas também ninho, também vida. É aquilo que as árvores evocam, habituados que estamos a encontrá-las junto à última morada. Serão casas sem vida, onde se vive como quem morre? Um bairro e janelas em vez de jazigos? Em vez de estendais e da roupa lavada a secar ao vento, bordados pendendo de caixões? As casas nesta série são cheias de vida, mas algures ao redor, casas na margem do lugar onde a cidade pulsa. Os lugares onde moramos estão repletos delas, avista- mo-las assim que nos afastamos do coração, onde já não vive ninguém. Quer Marta Pinto Machado mostrar que os nossos bairros se parecem com cemitérios? O que viu ela na lateral do prédio e no desenho das árvores que sombreiam os mortos? Talvez queira mostrar-nos, penso, ao ver as imagens ganharem cor e duas mulheres emergirem da penumbra, que ali, onde nos deixaram para morrer, se vive a cores.
Lado a lado, as mulheres dançam e olham-se. Quanto mais colorido é o traje, mais a sua vibração é tangente ao solo, como na imagem de uma das raparigas, deitada no chão, demasiado colorida para ter morrido ainda agora. A outra mulher, em vestido branco, que lhe revela uma cicatriz no peito, fala com os braços, quase a ouvimos, pende para um lado, e depois para o outro, convida-nos a escutá-la e à dança.
Que cicatriz será aquela, sobre a mama, numa tonalidade rosada, que incita a nossa curiosidade precisamente porque o vestido branco não a esconde — e Marta Pinto Machado escolheu mostrá-la? A mancha entrevista no peito da mulher de branco é o coração da série, ou a ele somos conduzidos. A cicatriz diz-nos: passaram-se muitas coisas comigo antes desta dança. Tens de não saber nada para saberes um dia tudo.
Talvez vivam ali, sejam amigas, irmãs. Não espantaria se habitassem o bairro suburbano que nos foi mostrado a preto-e-branco. Nada há nelas de fantasmático, como não há nesta série. Talvez o seu tema seja a imposição da vida sobre a morte, a recusa de perecer, a vitalidade da nossa continuação, quando tudo em redor nos pedia o contrário. As duas mulheres dão as mãos. Vibra entre elas uma corrente eléctrica. Lugar nenhum as deixará morrer.
Depois, olho de novo. Não há mancha nenhuma: é o sutiã da mulher de cabelo longo que se deixa ver sob o vestido. O olhar traiu-me e inventou um segredo, ou foi Marta Pinto Machado que o inventou (para mim).
Marta Pinto Machado é uma artista de quem se espera segredos. Olha e dá a ver com uma tal indiferença ao estado da arte e ao que se convencionou ser a convenção para uma artista negra da sua geração, que mantém a coragem e a força de ser apenas ela mesma. Diz e revela os outros sem chamar atenção sobre si própria, mas porque está interessada nos outros, o que transparece no modo como os olha e os capta. Não se serve de ninguém. Serve a sua visão e a alegria de fazer o que faz. É por tudo isto um caso praticamente único entre os artistas que se ocupam hoje, em Portugal, dos espaços e das histórias que vemos nesta série. Marta Pinto Machado não se deixará morrer.